O corpo familiar: um terreno organizador de vínculos

Por Iracema Teixeira**

 

A proposta deste artigo é compreender, sob a perspectiva da Psicologia Formativa®, criada por Stanley Keleman, o corpo familiar enquanto campo organizador na formação de vínculos vivida pela criança.

A Psicologia Formativa® é uma teoria recente que integra, de forma profunda, os processos biológico e psicológico. Stanley Keleman afirma que a existência é corporificada: “Eu sou meu corpo. Meu corpo sou eu”.(Keleman, 1996, p.15).

Nesta abordagem, a família é entendida como um corpo coletivo/social. Um terreno onde a criança irá desenvolver seu processo de maturação pessoal e organizar seu estilo próprio de dar e receber afeto.

Todo corpo familiar possui um script que espera ser seguido pela criança. São expectativas marcadas pelo sucesso ou fracasso, pelo incentivo à confiança em si mesmo ou à insegurança, pelo encorajamento ou temor ao crescimento. São expectativas que propiciam o desenvolvimento de um senso de capacidade e autonomia ou de incapacidade e menosvalia. Pode-se afirmar que, conforme a organização familiar, a criança irá maturar ou não sua individualidade. Neste sentido, a criança utilizará os adultos, com os quais interage, para formar seu próprio adulto. Ela irá lançar mão de várias estratégias para pertencer ao seio familiar e garantir seu desejo de ser aceita; tais como o imitar, competir, submeter-se, cooperar, se isolar, invadir, confrontar, aproximar-se, desafiar, juntar-se.

A organização de um corpo pessoal adulto inclui uma trajetória biológica, inexoravelmente vivida, que molda e é moldada pela experiência do contato. Na visão formativa, tornar-se adulto é um impulso presente desde a fecundação, que compreende um anseio por formar vínculos pessoalizando os padrões inatos de afeição¹. Assim sendo, ao longo do desenvolvimento humano (da fecundação até a morte) está presente o desejo de ser aceito.

Todo ser humano passa por diferentes estágios de contato, desde a fecundação. Antes de nascermos ficamos mergulhados dentro de um corpo – o útero, onde vivemos uma interação de grande fusão. A relação mãe/bebe e bebe/mãe retrata, desde cedo, a qualidade e a quantidade de distância e proximidade como primeiro esboço de organização de vínculos futuros. Neste primeiro momento existe, ao mesmo tempo, um impulso de vinculação e uma necessidade de manter uma separação. Necessitamos de um corpo maior para sobreviver – o útero, porém estamos separados pela placenta. É como se disséssemos: “Faço parte de você, mas não sou você”. Esta relação vivida no útero, a partir das trocas de sangue, do crescimento celular, do bombeamento placentário é “uma relação anterior à personalidade individual…”. (Keleman, 1996, p. 80).

Ao nascermos entramos em um corpo ainda maior, o mundo externo, e iniciamos, de forma mais definida, um novo processo de separação e individuação. Inicia-se a segunda fase da relação mãe-criança que é semelhante à conexão uterina, mas agora é o corpo da mãe e seus seios, em particular, que se constituem as estruturas que sustentam o contato; configura-se, portanto, um nível mais pessoal. O terceiro momento caracteriza-se pela maior participação do pai e demais pessoas que compõem o corpo familiar. A relação não é mais dual, torna-se coletiva.

Passo a passo uma maior inserção no mundo externo vai acontecendo. O corpo coletivo apresenta-se e é, gradativamente, introjetado pela criança, iniciando-se, assim, a organização de um corpo social.

Tais estágios apresentam formas de contato e conexões distintas. São essas primeiras experiências que nortearão os estilos futuros de dar e receber afeto. Porém, cabe lembrar que todo esse processo desenrola-se em um caldo cultural carregado de mitos ou idéias distorcidas, como por exemplo:

  • “Crianças não entendem o que acontece!”. Perceber a criança como uma tábula rasa, um ser passivo em suas vivências interacionais favorecerá ao surgimento de atitudes negligentes perante seus anseios e necessidades.
  • “Os pais e/ou cuidadores são sempre os culpados por todos os problemas”. Impor aos pais e/ou cuidadores toda culpa pelo “fracasso” na educação das crianças reforça a visão da condição passiva atribuída à criança.

Outro aspecto que vale ser considerado, diz respeito a alguns comportamentos frequentemente apresentados pelos adultos que podem ser impeditivos ao crescimento somático-emocional de suas crianças. Segue alguns exemplos:

  • Ter um filho como forma de amenizar sentimentos de solidão, frustração e ameaça de abandono; como tentativa de “salvar” uma relação; para “provar” algo; para atender às expectativas sociais ou de outrem; etc.
  • Criar demandas para se sentirem realizados através dos filhos: “Desejo que meu filho tenha a profissão que eu não tive.”, “Quero que meu filho dê continuidade aos meus projetos.”, “Quero dar ao meu filho o que eu não tive.”, etc.
  • Usar a criança segundo seus próprios interesses: “Me sinto fracassado (a), meu filho será alguém e sentirei orgulho dele.”, “Meu filho será tudo o que eu não fui.”, “As coisas funcionam do meu jeito.”, etc.

Portanto, de acordo com a Psicologia Formativa®, o desenvolvimento da experiência de dar e receber afeto ou de amar e ser amado envolve quatro fases, pelas quais a criança passa a fim de organizar comportamentos afetivos futuros, que se fundamentam na qualidade das relações que ela vivenciou com seus pais e/ou outros adultos cuidadores. (Keleman, 1996).

  1. Ser cuidado – Do nascimento até aproximadamente 03 anos de idade a criança necessita de um adulto para provê-la de suas necessidades básicas, como: nutrição, calor, higiene. Em outras palavras, ela precisa sentir-se perto da fonte de nutrição para garantir a continuidade do seu processo de crescimento biológico, bem como perceber a presença de um corpo maior que dê suporte e a provê de calor e proteção. A qualidade da interação nessa fase propiciará, na criança, a organização de um senso de garantia que seu crescimento prosseguirá, pois existe alguém que está olhando por ela. O pedido tácito da criança aos adultos é: “Cuide de mim, me dê suporte”.

 

  1. Ser objeto de interesse – Após os três/quatro anos a criança anseia por sentir-se como objeto de interesse dos pais. Na medida em que a criança cresce um sentimento de autodomínio vai se organizando, assim o foco dos adultos deverá estar em como ela irá formar suas relações e que tipo de relacionamento desenvolverá. Cabe aos adultos, portanto, importarem-se com suas crianças e o modo pelo qual elas se adaptam às situações sociais. Essa fase suscita a organização do sentimento de pertencer, que ela faz parte de uma comunidade de corpos. Seu pedido aos adultos é: “Olhe para mim”. “Veja o que eu fiz”.

 

  1. Compartilhar – Em torno dos seis anos inicia-se a transição do apego para o compartilhamento, ou seja, o adulto “ensina” a criança sobre o que é companheirismo. É uma fase que envolve, concomitantemente, experiências de separação e proximidade propiciando, na criança, sentimentos de confiança de que ela poderá contar com alguém independente da distância. O relacionamento forma-se pelo movimento de um corpo junto com outro – senso de estar acompanhado. É o momento em que a criança expressa seus próprios sentimentos e percepções e possui a expectativa de que os adultos lhe deem alguma resposta. A criança “diz”: “Aprendi isso… Senti isso… Experimentei isso.” e solicita uma resposta dos adultos.

 

  1. Ser cooperativo – Por volta dos nove anos inicia-se a formação de um corpo cooperativo. A criança interessa-se e compromete-se com algo maior do que ela. Ela se envolve mais com a interação familiar e precisa perceber que cooperar vai para além do acompanhamento, que inclui o senso de que possuir um papel a desempenhar na família. Nesse momento a criança, bem como os adultos, precisam perceber a necessidade de um esforço mútuo para sustentar o envolvimento em longo prazo. Além disso, precisam perceber que cooperar é fazer algo junto em prol de um objetivo maior do que o desejo individual. O pedido da criança aos adultos é: “Quero participar”.

Nas duas primeiras fases a criança necessita de um cuidador e nas demais de um cuidador/companheiro. Ao assumirem esses papéis, os pais e/ou cuidadores, estarão estimulando a formação de corpo adulto maduro.

As fases aqui apresentadas, apesar de terem sido descritas como a relação adulto-criança, continuam durante a vida toda, portanto, não obedecem apenas a uma cronologia.

São experiências presentes em todos os contatos e relacionamentos amorosos que o indivíduo vivencia ao longo de sua história, ou seja, em todos e quaisquer relacionamentos tais estágios se sobrepõem, em certa medida. Como diz a música: “quando a gente ama, a gente cuida.”. É preciso também se interessar pelo ser amado, compartilhar a vida e intimidades e cooperar para manter o amor.

Finalmente, viver seu próprio processo de maturação e ajudar/ensinar o outro a viver o dele é um ato de amor. Esse aprendizado segue por meio do tocar ternamente, olhar nos olhos, beijar com interesse, trabalhar junto, expressar calor, dar os limites necessários, ensinar a ouvir e dizer não, ser receptivo e não complacente, assim por diante. Dessa forma, espera-se que na família, os adultos (um corpo maior) venham a ensinar a criança (um corpo menor) a cuidar, se interessar, compartilhar, ser íntimo, brincar e trabalhar em conjunto.

A família é um terreno, solo a ser fertilizado para germinar as formas adultas/maduras de existir.

Referências Bibliográficas:

  1. KELEMAN, Stanley. O corpo diz sua mente. São Paulo: Summus, 1996

 

  1. Amor e vínculos. São Paulo: Summus, 1996

 

  1. Mito e corpo: uma conversa com Joseph Campbell.São Paulo: Summus, 2001

*Artigo publicado na Revista OMB – Organização Montessoriana do Brasil. Nº 6, setembro de 2003.

** Iracema Teixeira – psicóloga clínica (CRP 05/8968), doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em educação Sexual, mestre em Sexologia Clínica, professora universitária, membro da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana, membro profissional associado ao Centro de Psicologia Formativa® do Brasil.