Compulsão e contenção: reorganizando apetites e formas de comer

Por Leila Cohn, Junho 2011

(Reprodução parcial do texto entregue aos participantes do workshop)

No início

Em tempos ancestrais a abundância de comida era sazonal, e comumente não havia o suficiente; para adquirir nutrientes e garantir o sustento era necessário caçar, colher, pescar, e nomadear por terras longínquas. Percorria-se grandes distâncias e despendia-se um grande esforço para ter o que comer, o que consumia grande parte do cotidiano.

A disponibilidade de alimentos desempenhou um papel fundamental na evolução humana; a partir do advento da agricultura e da domesticação dos animais no neolítico (10.000 AEC), a população mundial aumentou cerca de 1.000% em 6.000 anos, tendo se organizado inicialmente em pequenas aldeias, depois em povoados e cidades e posteriormente em impérios.

Pano de fundo: nossa herança

A capacidade de aquisição e manutenção de peso foi um fator valioso para a sobrevivência, e nesta luta nossos ancestrais formaram o genoma que trazemos hoje. Evolutivamente, somos descendentes daqueles que tiveram maior capacidade de ganhar peso com facilidade em épocas de abundância e de sustentá-lo por um período razoável. Embora a situação tenha se alterado radicalmente desde então, geneticamente ainda somos em grande parte “como nossos pais”. Vivemos então o paradoxo de termos uma situação de abundância nunca dantes experimentada, enquanto nossos corpos continuam capazes de aproveitar com o máximo de eficiência todos os nutrientes que ingerimos. Fazemos parte de uma linhagem bem sucedida que desenvolveu a capacidade de acumular energia em forma de gordura para enfrentar os tempos de escassez.

Além disso, a estabilidade do peso configurou-se como um fator importante para a saúde. O corpo aprecia a continuidade e não gosta de mudanças rápidas ou radicais, pois isto desestabiliza a estrutura vigente, representando uma ameaça. Deste modo, estamos geneticamente programadas também para manter a forma, ou seja, para conservar o peso.

A favor da manutenção de uma estabilidade, herdamos também um sistema inato de auto-regulação que trabalha influenciando o nosso metabolismo para mais ou para menos, dependendo da necessidade do momento. Assim como outros mecanismos involuntários, este também pode ser ativado e influenciado voluntariamente. Neste workshop, proponho a prática de exercícios simples para ativar o mecanismo de auto-regulação através do uso do micro esforço muscular voluntário.

Sobre este pano de fundo geral temos sempre operando as diferenças estruturais e as especificidades pessoais, afetando de forma distinta a experiência dos apetites e os processos metabólicos. Neste trabalho buscaremos organizar uma forma pessoal de lidar com a comida a partir do que nos foi dado geneticamente.

Visão evolutiva: Comer a mais como uma estratégia para o viver

Ao longo da vida nos deparamos com dificuldades e obstáculos. Diante das situações desafiantes nos organizamos da melhor forma possível com os recursos disponíveis a cada momento. Comer excessivamente certamente cumpriu uma função adaptativa e de certa forma representou um sucesso biológico, na medida em logramos alcançar a forma adulta. No presente porém, este padrão tornou-se obsoleto e desejamos modificá-lo. Enquanto adultas dotadas de uma capacidade voluntária, podemos de fato intervir neste hábito e alterar o comportamento estabelecido. Para tanto, trabalharemos com micro movimentos voluntários. Usaremos a capacidade cortical-muscular de modulação de gestos e intensidades para acessar padrões de ação herdados ou formados, e desdobrá-los em outras possibilidades de ação.

Considerando então comer em excesso como uma estratégia adaptativa, entendemos que, como toda estratégia, esta também cumpre uma função. Interessa-nos descobrir que funções são estas, uma vez que traduzem anseios ou necessidades que precisam ser atendidos de alguma forma.

Influenciando o comportamento

Desorganizando excessos e pessoalizando a herança

Comportamentos estáveis, como hábitos alimentares, fazem parte de um sistema bem montado para sustentação e durabilidade.

Quando falamos em educação alimentar comumente pensamos no que comemos, mas raramente pensamos em como comemos; falamos da qualidade e quantidade dos alimentos, mas não atentamos para as várias etapas envolvidas no ato de comer: olhar o alimento, antecipar o sabor, levá-lo a boca, mastigá-lo e ingeri-lo.

Começaremos mapeando o impulso de buscar a comida. O impulso de comer configura gestos instintivos de buscar, alcançar e pegar algo. Estes gestos são inatos, e podem ser observados em qualquer bebê buscando o seio. Vamos reproduzi-los voluntariamente e depois graduá-los em passos distintos de forma a criarmos uma multiplicidade de formas e experiências do ato de ir ao alcance da comida.

Vamos investigar cuidadosamente as posturas emocionais envolvidas no processo de comer e reorganizar as conexões neuro-motoras que sustentam nossos hábitos alimentares, criando novas formas de comer. O cérebro mapeia novos comportamentos; quanto mais repetimos um modo de agir, mais se fortalecem as conexões neurais correspondentes, sustentando o mapa recém-formado.

Aprenderemos a criar variações a partir de um comportamento automático e a repeti-las voluntariamente para estabilizar as novas conexões cerebrais. Trabalharemos formativamente também com outros temas correlatos ao impulso de comer, tais como administração do tempo, regulação entre atividade e repouso e auto-expressão.

Apetites, Impulsos e Modulação

Fome, apetite, desejo,

Devorar, comer, degustar

Buscar, modular, suavizar

 

Impulso, inibição, regulação

Movimento, alcance, colheita

Contato, acolhimento, contentamento

 

Contorno, contenção, pertencimento

Borda, saciedade, contentamento,

Pertencimento, contentamento, satisfação.

 

Formas de Comer

Comer com os olhos,

Comer com a boca,

Comer com a barriga,

Comer com o coração.

Comer com cuidado,

Comer com prazer,

Comer com alegria,

Comer com amor.